Manifestações: “Brasil vive um arremedo de democracia,” diz advogada presa no Rio
Em entrevista a CartaCapital, Eloisa Samy narra como foram os dias na prisão, detalha seu pedido de asilo no Uruguai e fala do medo sentido após a investigação.
Um dia antes da final da Copa do Mundo, a advogada Eloisa Samy, 45 anos, foi presa no Rio de Janeiro. Entre a saída do presídio em Bangú e outro pedido de prisão, Samy ganhou atenção da imprensa ao ficar foragida e pedir asilo ao Uruguai...
Em conversa com a CartaCapital por telefone na noite deste sábado 26, Samy contou como foram as últimas duas semanas. Na prisão, ela diz que as manifestantes presas tiveram privilégios em relação às outras detentas.
Após ser libertada por um habeas corpus, Samy teve um novo pedido de prisão determinado pela Justiça carioca. Ela conta como entrou, na última segunda-feira 21, no consulado uruguaio e pediu asilo político, ao lado de seu filho adotivo David Paixão, de 18 anos, e Camila Nascimento, 19. No dia seguinte, Samy ganharia outro habeas corpus, que manteve ela em liberdade até agora.
A investigação diz que a advogada fazia reuniões em sua casa e havia se afastado da sua atividade profissional nos protestos. Na entrevista, Samy nega os dois fatos, que levaram ela a ser acusada de formação de quadrilha pela Polícia Civil carioca.
Leia abaixo trechos da conversa com a reportagem:
Primeiros dias no presídio
Ficamos em Bangu 8, as oito [ativistas presas] juntas. Toda tem curso superior, mas ficamos numa cela coletiva com dezenoves beliches feitos de cimento. Era um lugar limpo. Na primeira noite, não recebemos cobertores suficientes, só recebemos três. Bateu um frio do cacete, e dormi só enrolada num lençol.
A comida é o mais sofrido. É uma quentinha que vem cheia de arroz com feijão, uns pedacinhos de carne e refresco. Não recebemos talheres, nem de plástico. Ou a gente comia com as mãos, ou improvisava uma colher. E isso custa 70 reais ao Estado, uma comida que não tem sal.
Estava com problema na eletricidade e dormimos três noites com as luzes acesas. Era muito difícil dormir, porque tinha mosquitos de tamanho de helicópteros, sedentos, voracíssimos.
Passei medo, terror de perder o controle sobre a minha vida ao ser acusada de algo que eu não fiz. O Estado não abona somente o seu tempo, a sua liberdade. Ele diz para você a hora que você tem que acordar, dormir e comer. É uma violência atrás da outra, você é cadastrado, fichado e rotulado diversas vezes.
O "tratamento VIP" das militantes
O tratamento de nós oito, considerando o geral do presídio, foi VIP. Mas pediram que quando saíssemos denunciássemos as prisões delas. As outras tem que competir com ratos, lacraias e baratas. É absolutamente insalubre.
Uma guarda chegou a falar “vocês não são presas comum, estão aqui por causas das manifestações”. Elas nos trataram com muito respeito. O pessoal da faxina, as presas que podem circular pelo presídio e tem alguns privilégios, estavam sempre acompanhadas por uma guarda. Elas receberam ordens específicas para não se comunicarem conosco.
Teve uma noite que ouvimos uma presa ser torturada. Ela foi algemada no corredor e estava frio. Eu tive a impressão de que ela pudesse estar com o braço quebrado, porque chorou pedindo socorro, pedindo ajuda.
Novo pedido de prisão
Fui entrar no Facebook para ver as notícias [no dia seguinte a sua saída da prisão, já em casa]. Eu não estava nele há dez minutos quando um jornalista me passou um link do G1, dizendo que o delegado tinha pedido minha prisão preventiva. Aquilo me gelou da cabeça aos pés, e ainda não tinha nem expedido o mandado [de prisão]. Dei um grito, e falei ao David: vamos embora, vamos embora! Pegamos algumas coisas, colocamos dentro da mochila e saímos, fomos para a rua.
Pedi ao meu irmão que tomasse conta dos meus cães, só deu tempo dele chegar, eu entregar as chaves para ele e ficamos pela rua vagando, tentando contato com pessoas até uma e meia da manhã, quando conseguimos ajuda para passar a noite em outro lugar.
Decisão sobre o asilo
Em outra casa, gravei o vídeo no domingo. Eu falei que não estava conseguindo pensar direito a alguns amigos, e que cheguei a pensar em pedir asilo político. Disseram: “porra, seria uma ótima ideia, mas para onde você iria?”. Na conversa, falei que Itália era uma boa ideia. Falaram que também poderia ser a Bolívia ou o Uruguai.
Eu disse que não iria à Bolívia, porque a situação lá não está muito melhor do que aqui. A Itália tem a história do Cesare Battisti, que o Lula deu asilo e eles não gostaram. Mas eu vou para lá? O que eu vou fazer lá? O Uruguai tem o Mujica [presidente do país], e eu simpatizo com a maneira de governar dele.
Chegada ao consulado do Uruguai
No domingo à noite, eu sai e fui para outro lugar dormir. Segunda de manhã, oito e meia, um amigo chegou onde a gente estava e falou: “se arrumem, vocês vão para o consulado do Uruguai.” A primeira ideia era de fato conseguir asilo. Mas tinha outra situação possível: criar um fato político, gerar uma comoção política.
Chegamos perto do consulado nove da manhã, eu e os garotos. Fomos de táxi até lá e chamamos ativistas, imprensa e grupos de direitos humanos.
Às nove e meia, já tinha um pequeno número de ativistas nos esperando. Sentamos numa lanchonete na esquina, tomamos um café, conversamos um pouco. Perguntaram se eu tinha certeza do que estava fazendo, eu falei “posso dar um primeiro tiro no pé, mas ficar parada não dá.”
Enquanto a gente estava conversando, reparei que tinham quatro P2s [policiais a paisana] nos rodeando, ou mais. Eu falei “vamos sair daqui e entrar no consulado agora”.
Dentro do consulado uruguaio
Batemos na porta da consulado às dez da manhã. Eu me apresentei, disse quem eu era e me levaram para dentro. Em linhas gerais, o auxiliar de chancelaria disse: “não te conheço, não sei que história é essa que está me contando. Já apareceu gente aqui com problemas na Justiça pedindo asilo, e não tinha nenhuma justificativa diplomática para isso.”
Enquanto a gente conversava, chegaram duas funcionárias dizendo que carros da polícia estavam lá fora. Ele perguntou “o que você tem para provar o que está dizendo?” Eu expliquei que havia diversas notas publicadas na internet, de professores, centro acadêmicos, partidos e organismos de direitos humanos falando da minha situação.
A cônsul pediu para falar comigo quando chegou. Dois midiativistas e dois jornalistas conseguiram entrar. Eu disse “preciso que alguém vá numa lan house, imprima e apresente as notas como prova. E também podem falar isso com os advogados para ver se consigo a denúncia do Ministério Público”.
Falei à cônsul: “quando eu cheguei aqui, vocês não faziam a ideia de quem eu era. Agora vocês já podem ver o circo que está se fazendo disso.” A cônsul não sabia como agir, e teve que pedir orientação da embaixada em Brasília.
Subiram dois P2s, um se identificou como tenente-coronel. Aí o pessoal do consulado me levou para dentro, fechou outra porta. Depois, chegaram a colocar os dois para correr.
O consulado fecharia às quatro horas da tarde. Por volta dessa hora, chegou a doutora Janira Rocha [deputada estadual do PSOL]. Ela perguntou se estávamos bem, se precisávamos de alguma coisa. Mas a gente estava sendo bem tratado.
A Janira perguntou se podia ficar ali. Eu disse que sim, que toda ajuda era bem vinda. Ela ficou lá, e também outro advogado, que eu conheço há mais de um ano das manifestações.
O pedido de asilo é negado
Seis horas da tarde, a cônsul me disse que o pedido de asilo tinha sido negado e que essa ordem tinha partido de Montevideo, do Ministério de Relações Exteriores. Disse que eles reconheciam o Brasil como um Estado de direito e não havia Estado de exceção.
Eu disse que o Estado de exceção que está ocorrendo no Rio conta com a conivência, o silêncio e até o fomento do Governo Federal. Ela disse que o governo uruguaio considera, mesmo assim, o Brasil um Estado democrático. Então a cônsul disse: "Vou ter que solicitar que vocês deixem imediatamente o consulado”.Pedi cinco minutos para comer.
Conversei com meu amigo, perguntei o que aconteceria se a gente não saísse dali. Ele disse “vão chamar a Polícia Federal, e vocês vão ser retirados por ela”. Chegamos a avaliar a possibilidade de pular para outro prédio, estávamos no sexto andar, mas o do lado era muito distante. Até brinquei, “dá uma corda que a gente tenta sair daqui de rapel”.
Saída do consulado com a deputada
Perguntei a Janira se ela estava de carro e podia me dar uma carona. Ela ficou meio surpresa e falou “até posso”. E aí disse que a gente teria que sair bem rápido, falou: “olha só, se a policia parar o carro, eu não vou poder me opor. Eu vou cumprir a ordem e vocês vão ter que se entregar.”
Chegamos no carro. A entrada da garagem tem uma subida bem íngreme, tem que subir devagar. Você sobe e só vê o teto, a gente não sabia o que tinha na frente. O carro parou, algumas pessoas acenaram, e eu vi na frente umas quatro viaturas de polícia.
O sinal de trânsito estava fechado, e tinha um ônibus exatamente na frente. Ninguém arrancou com o carro, ninguém se mexeu. Não fomos parados, não fomos seguidos, e pedi para que nos deixassem em São Conrado. Eu não acreditei que eu tinha conseguido passar. Então fomos a outro lugar, onde passamos esses dias até o habeas corpus.
O novo habeas corpus
A gente estava vendo a televisão quando a Globo avisou que o Siro Darlan tinha conseguido habeas corpus para os ativistas. Eu comemorei muito, nos abraçamos, pedimos que avisassem minha mãe e avisei aos amigos que estaria em casa no dia seguinte de manhã.
Depois vi parte do inquérito, disseram que eu fazia reunião em casa com manifestantes, mas isso é mentira. E nunca atuei nas manifestações afastada de outros colegas advogados. Muito pelo contrário, sempre estive acompanhada de alguém, nunca estava sozinha.
Toda minha atuação foi estritamente profissional. Mesmo simpatizando com a causa, nunca misturei isso com a minha atuação. Sempre disse que estava ali como advogada, não como manifestante. E, desde o começo do ano, como os PMs estavam dispersando os manifestantes, eu achava mais conveniente dar plantão nas delegacias.
“Brasil vive um arremedo de democracia"
Meu pedido de asilo abriu um debate muito grande sobre se o Brasil é um estado de direito democrático de fato. Ele não é [por] muito tempo. Quem experimenta essa negativa todos os dias são os favelados, as comunidades carentes. Se nós não damos voz para todos, não temos democracia verdadeira. Há pessoas com mais direito que as outras.
O que o Brasil vive, e isso está flagrante, é um arremedo de democracia, um arremedo de estado democrático de direito. E isso é a única razão que me levou às ruas, lutar pela efetividade democrático de direito.
Eu vivo em uma classe privilegiada, e, como privilegiados, temos também o dever de reconhecer aquelas pessoas que estão mais vulneráveis do que nós. Essa é a minha responsabilidade, que vem por privilégios que eu tive, que me foram deferidos pelos estudos, pela cor da minha pele e pelos salários que eu ganho.
Fonte: Por PIERO LOCATELLI, revista CartaCapital - 28/07/2014
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